terça-feira, 22 de setembro de 2015

Investigação e análise crítica das realidades pedagógicas na instituição escolar


ARTIGO




COTIDIANO ESCOLAR E PRÁTICAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS

Marli E. D. A. André*

Introdução



          No presente trabalho procuro discutir como os estudos do tipo etnográfico, que focalizam situações do cotidiano escolar - podem contribuir para o redimensionamento da prática pedagógica. Tomando por base dados de três pesquisas realizadas em escolas do 1° grau, pretendo mostrar que esses estudos constituem importante fonte de reflexão sobre a prática escolar, ponto de partida para seu entendimento, para o equacionamento de seus principais problemas e para um encaminhamento de alternativas visando sua reconstrução.

          Tento traçar, na primeira parte do trabalho, o caminho de aproximação da Educação com a Etnografia. Os estudos sobre a sala de aula e as pesquisas sobre avaliação curricular parecem estar na raiz dessa aproximação. Aponto algumas obras e autores que tiveram papel marcante nessa trajetória e destaco eventos e instituições que favoreceram tal aproximação.
Em seguida defendo o ponto de vista de que se deve fazer um esforço para construir teóricamente a categoria "cotidiano escolar", pois vários estudos referem-se ao cotidiano escolar como mero local de coleta de dados, sem muita preocupação com seu significado mais profundo. Argumento que são freqüentes, na área de Educação, trabalhos que focalizam situações da realidade escolar cotidiana limitando-se à descrição de seus aspectos mais superficiais e aparentes sem chegar a uma análise dos múltiplos fatores não visíveis que as determinam. Constato que são raros os trabalhos que recorrem aos conceitos de "vida cotidiana", "cotidianidade", "cotidiano" discutidos por autores como Heller, Kosik, Lefevre, sendo mais raros ainda aqueles que tentam relacionar tais conceitos com a "vida escolar cotidiana".
*Professora da Faculdade de Educação da USP
          Na terceira parte do trabalho ensaio algumas alternativas para se avançar no sentido da construção da categoria "cotidiano escolar". Tomando como exemplos três pesquisas realizadas em escolas do 1o grau, analiso-as criticamente, revendo seu enfoque teórico-metodológico, mostrando suas principais contribuições e seus maiores problemas.
Finalmente menciono algumas questões comumente apontadas nos de- bates e na literatura educacional sobre os estudos que focalizam práticas pedagógicas bem sucedidas.


A Trajetória da Abordagem Etnográfica na Pesquisa sobre a Escola



           O interesse dos educadores pela Etnografia torna-se muito evidente no final dos anos 70 e tem como centro de preocupação o estudo da sala de aula e a avaliação curricular.

          Até o início dos 70, a pesquisa de sala de aula utilizava basicamente esquemas de observação que visavam registrar comportamentos de professores e alunos numa situação de interação. Por isso mesmo esses trabalhos se tornaram conhecidos como "análises de interação". Tendo como fundamento os princípios da psicologia comportamental, eles serviram não-somente para estudar as relações professor-aluno em sala de aula mas também para desenvolver habilidades de ensino ou medir a eficiência de programas de treinamento de docentes.
          Os instrumentos de observação usados nessas pesquisas foram reunidos numa publicação composta de mais de 10 volumes, intitulada Mirrors for Behavior (Simon e Boyer, 1968 e 1970) que apresenta uma descrição detalhada de 79 instrumentos.
          Uma análise crítica desse tipo de investigação aparece no livro Explora- tions in Classroom Observation, organizado por Michel Stubbs e Sara Delamont, cuja publicação ocorreu em 1976. Esse livro constitui um ponto importante na história do uso das abordagens etnográficas em educação - mais especificamente na pesquisa de sala de aula- seja na Europa e Estados Unidos, seja no Brasil, porque ao mesmo tempo em que faz uma crítica aos estudos de interação, sugere como alternativa a abordagem antropológica ou etnográfica. 

          No primeiro capítulo do livro há uma análise crítica às pesquisas de sala de aula realizadas principalmente nos Estados Unidos, na década de 60, que, segundo os autores, muito pouco contribuíram para compreender o processo de ensino aprendizagem.
          As críticas se referem especialmente aos sistemas de observação que pretendem reduzir os comportamentos de sala de aula a unidades passíveis de tabulação e mensuração, nos moldes de Flanders. Esses esquemas de observação, segundo Delamont e Hamilton (1976), ignoram muitas vezes o contexto espaço-temporal em que os comportamentos se manifestam; focalizam estritamente o que pode ser observado; utilizam unidades de observação derivadas de categorias pré-estabelecidas, que por sua vez orientam a análise, criando uma certa circularidade na interpretação. Além disso, ao segmentar os comportamentos em unidades mensuráveis, esses esquemas colocam limites arbitrários em algo que é contínuo. Ainda no que se refere à interpretação dos dados, há dificuldades inerentes a como lidar com a massa de dados usualmente coletada através desses sistemas. Pode-se dizer, assim, que nesse tipo de estudo há uma super valorização da metodologia em detrimento da teoria - é o que acontece por exemplo ao se usar um sistema de categorias definidas a priori, que separa o cognitivo do afetivo - e uma preocupação exagerada com a objetividade, que leva a valorizar mais o número de observações que seu conteúdo.
          A alternativa apresentada pelos autores, para ultrapassar os problemas encontrados nos esquemas de análise da interação é a abordagem antropológica. Segundo eles, a investigação de sala de aula ocorre sempre num contexto permeado por uma multiplicidade de sentidos, que por sua vez fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador. Para entender e descrever essa cultura, o pesquisador faz uso da observação participante, que envolve registro de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são considerados sempre inacabados. O observador não pretende comprovar teorias nem fazer generalizações estatísticas. O que busca, sim, é compreender e descrever a situação, revelar seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e sua plausibi- lidade.
          O livro de Stubbs e Delamont foi importante, por um lado, porque apresentou de forma concisa e bem fundamentada as principais críticas aos estudos da interação e, por outro lado, porque divulgou os pressupostos da Etnografia, recomendando o uso da abordagem antropológica na pesquisa de sala de aula.
De maneira mais direta, há uma contribuição de Sara Delamont à pesquisa educacional no Brasil, uma vez que ela esteve pessoalmente na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, no final dos 70, quando foram realizados vários seminários e discussões sobre o potencial dessa abordagem para a área de educação.
          Outra publicação que certamente preparou favoravelmente o terreno para a aproximação da Etnografia com a Educação foi o livro publicado por David Hamilton, David Jenkins, Cristine King, Barry MacDonald e Malcolm Parlett, intitulado Beyond the Numbers Game (1977). O livro resultou de um seminário realizado em 1972, em Cambridge (GB), onde foram discutidos métodos não convencionais de avaliação de currículo e foram feitas propostas para os futuros estudos na área. Um trabalho que teve grande destaque nesse encontro foi o de Parlett e Hamilton, que critica de forma contundente o paradigma vigente nas pesquisas avaliativas, sugerindo como alternativa a abordagem iluminativa, que tem fundamento no paradigma sócio-antropológico. Na proposta desses autores deve ser dada atenção especial ao contexto particular em que se desenvolvem as práticas educacionais, devem ser levadas em conta as dimensões sociais, culturais, institucionais que cercam cada programa ou situação investigada e devem ser retratados os pontos de vista divergentes dos diferentes grupos relacionados ao programa ou situação avaliada. Outros trabalhos discutidos no seminário defendem a mesma linha, havendo mesmo um manifesto final do encontro, onde os participantes expressam suas principais recomendações, que podem ser resumidas nos seguintes pontos:
- que sejam mais usados dados de observação (substituindo, quando possível, os dados de testes);
- flexibilidade no "design" para inclusão de eventos não previstos (focalização progressiva em lugar de esquema pré-definido).
- que os valores e posições do avaliador sejam revelados. 

          Muito embora essas idéias se dirijam mais diretamente aos trabalhos de avaliação curricular, elas tiveram um impacto grande na pesquisa educacional, tanto na Inglaterra e Escócia, América do Norte, Suécia e Austrália de onde provinham os participantes do encontro, quanto em vários outros países onde chegaram os resultados do seminário, entre os quais o Brasil.
Não há a menor dúvida de que os primeiros trabalhos publicados no Brasil sobre o uso da abordagem etnográfica em educação (ver especialmente ANDRÉ, 1978) tiveram influência dos trabalhos realizados na área de avaliação, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos. Nesse sentido não pode ser esquecido o livro de Egon Guba Toward a Methodology of Naturalistic Inquiry in Education (1978), que certamente foi um marco importante na área de avaliação, inaugurando uma linha nova e muito fértil de investigação - a dos estudos "naturalísticos", baseados na abordagem antropológica ou etnográfica.
No Brasil, além da Fundação Carlos Chagas já mencionada, destacou-se também o Departamento de Educação da PUC-RJ, que foi sem dúvida pioneiro na realização e divulgação de pesquisas utilizando essa abordagem de pesquisa.
Um evento importante na socialização mais ampla dessas novas idéias foi o Seminário de Pesquisas da Região Sudeste, realizado em Belo Horizonte, em 1980, quando foi organizada uma mesa redonda sobre o tema "A Pesquisa Qualitativa e o Estudo da Escola". Nesse momento o centro de interesse amplia-se da sala de aula para a escola e da abordagem etnográfica para outras formas de investigação como, por exemplo, a pesquisa participante (Campos, 1984). As propostas apresentadas por vários pesquisadores nesse encontro, assim como os comentários da debatedora, profa. Aparecida Joly Gouveia, foram publicados nos Cadernos de Pesquisa no 49 (Ludke, 1984), ampliando considerávelmente o âmbito de divulgação dessas idéias.
Outro evento marcante no debate educacional acerca das novas formas de investigação foi o seminário promovido pelo INEP -Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - sobre pesquisa participativa, em 1983, onde surgiram muitas questões importantes, divulgadas no Em
Aberto no 20 (1984). Neste evento esteve presente a pesquisadora Justa Ezpeleta, do Centro de Estúdios Educativos, do México, que, além de fazer considerações muito polêmicas durante o encontro, publica um pouco mais tarde, junto com Elsie Rockwell, o livro Pesquisa Participante(1986) que é, sem dúvida, uma referência obrigatória aos que se interessam pelo uso da abordagem etnográfica no estudo da escola.
Não podemos deixar de mencionar ainda a visita do Dr. Robert Stake, do Center for Instructional Research and Curriculum Evaluation, da Universidade de Illinois, que esteve na UFES, na USP, na PUC-RJ, na UFRGS e na Fundação Carlos Chagas no ano de 1983, divulgando suas pesquisas e discutindo questões voltadas ao uso das abordagens qualitativas em educação.
          Ao lado desse e de outros pesquisadores que ainda poderiam ser lembrados nessa nossa breve reconstituição da trajetória da Etnografia e das abordagens qualitativas na área de educação, precisam ser lembrados dois nomes: Luiz Pereira e Aparecida Joly Gouveia que fizeram uso de conhecimentos sociológicos para investigar os problemas da escola e da educação. Seus trabalhos são considerados "clássicos" e sem dúvida tiveram e têm ainda bastante influência na pesquisa em educação.
No final dos anos 80 há um número considerável de dissertações, teses e relatórios de pesquisas nos Programas de Pós-Graduação em Educação do Brasil que mencionam as abordagens qualitativas. A cada ano novos trabalhos vão surgindo, tornando agora a produção mais consistente e deixando também mais evidente os problemas e desafios que ainda devemos enfrentar. Vamos discutir apenas alguns deles.
              Da Necessidade de Construir a Categoria "Cotidiano Escolar"
          Muitos estudos e pesquisas produzidos na área de educação, nos últimos dez anos se auto classificam como "qualitativos" e não raro como etnográficos. O que se verifica, no entanto, é que a grande maioria envolve dados de campo, sistematizados em forma de descrições que acrescentam muito pouco ao que se sabe ou conhece ao nível do senso comum. É a empiria pela empiria. O autor parece satisfazer-se com o fato de coletar uma grande quantidade de dados e parece "esperar" que esses dados por si produzam alguma teoria. Mas é evidente que sem um referencial de apoio que oriente o processo de reconstrução desses dados não há avanço teórico - fica-se na constatação do óbvio, na mesmice, na reprodução do senso comum.
          O que acontece nesses casos é uma supervalorização dos procedimentos de coleta de dados em detrimento de uma opção metodológica, uma vez que os estudos se limitam a apresentar esses dados na forma em que se manifestam, sem um questionamento mais profundo de suas raízes, de seu significado naquele momento histórico, de seus condicionantes e implicações. Falta nos mesmos um suporte teórico que oriente o processo de construção do objeto de estudo, sendo bastante comum a apresentação de um referencial teórico no início do trabalho que tem muito pouco a ver com o trabalho de campo e as análises realizadas.
          Essa confusão entre procedimento etnográfico e método de investigação acaba por limitar sobremaneira as contribuições dessas pesquisas em termos de geração de novos conhecimentos. A própria qualidade do trabalho fica comprometida, pois como não há muita clareza sobre a importância do referencial teórico e de seu papel no processo de coleta e análise dos dados, seus resultados acabam ficando na constatação do óbvio. Há constantemente uma questão no ar: O que tal estudo acrescentou ao que já se sabia?
          Assim como acontece com a etnografia que, ao ser apropriada pela área de educação, passa por um certo reducionismo, perdendo seu sentido metodológico de "descrição densa da cultura de um grupo" (Geertz, 1973), para se tornar um mero procedimento de coleta e descrição de dados, também o conceito de cotidiano escolar tem sido usado nas pesquisas educacionais num sentido muito estrito - lugar da coleta de dados. Ora, essa concepção limitada tem produzido trabalhos no cotidiano da escola, mas não sobre o cotidiano da escola. Muito pouco esforço tem sido feito em termos de construir a categoria "cotidiano escolar". Continuamos, ainda, sem muita clareza sobre o que consistui a vida escolar cotidiana, sobre as suas especificidades e sobre a dinâmica de relações entre essa e outras esferas da vida em sociedade.
          É urgente que se construa teóricamente a categoria cotidiano escolar, pois sem ela corre-se o risco ou de tomar as propostas de autores como Heller, Lefèvre, Kosik, que falam do cotidiano em geral e tentar aplicá-las diretamente, de forma dedutiva, na análise da escola; ou então, por falta de um questionamento profundo das categorias que emergem da vida escolar diária, tomar o concreto empírico como sendo o concreto real. Investigar as especificidades do cotidiano da escola é tarefa das mais urgentes. Precisamos tentar responder a questões como: O que caracteriza a vida escolar cotidiana? Que elementos são específicos da instituição escolar, isto é, só aparecem na escola? Como esses elementos específicos se articulam - ou não -com outras esferas da vida cotidiana?
          Pensando no caminho a ser seguido para que se efetive tal construção, consideramos que os pesquisadores precisam, antes de tudo, estar atentos para não limitar a descrição do que se passa no dia-a-dia escolar à sua manifestação primeira, ao concreto aparente. Precisam, em vez disso, tentar ir bem fundo na análise dos elementos que compõem esse cotidiano, questionando suas origens, seu significado, suas limitações e principalmente suas vinculações aos objetivos sócio-políticos e econômicos que os determinam naquele momento histórico. Para proceder a essa crítica o pesquisador vai ter que se apoiar num referencial teórico que o oriente na escolha inicial das categorias de análise e posteriormente na sua reconstrução em face das características específicas do objeto de estudo. Alem disso, é preciso que ele mantenha essa atitude crítica ao longo do trabalho de pesquisa e mesmo ao final dele, questionando o valor e a pertinência de suas análises e pressupostos, identificando seus limites e buscando medidas concretas de superá-las.
                 Revendo Estudos sobre as Práticas Escolares do 1 Grau
          Vou retomar aqui três pesquisas desenvolvidas em escolas do 1 grau, apontando seus objetivos, o enfoque teórico-metodológico utilizado e os problemas encontrados. Tentarei mostrar que, ao fazer a revisão crítica das mesmas,foram se tornando evidentes algumas dimensões que devem se privilegiadas na abordagem das situações do cotidiano escolar.
Em 1983, realizamos uma pesquisa sobre as práticas de alfabetização de 20 professoras da rede pública da cidade do Rio de Janeiro (Kramer e André, 1984). O que buscávamos e o que aprendemos com esse estudo?
          Pretendíamos, em termos gerais, conhecer o trabalho desenvolvido por professoras que estavam tendo sucesso na alfabetização de crianças da escola pública, apesar dos limites de suas condições de trabalho e formação. Em termos mais específicos tentávamos investigar: (1) como a professora lidava com a problemática da disciplina na sala de aula; (2) se e como eram aproveitadas as experiências e vivências culturais das crianças; e (3) quais os critérios da professora para considerar seus alunos alfabetizados. Para a coleta de dados utilizamos basicamente a observação das aulas, tendo como alvo as práticas de trabalho da professora.
           As conclusões do estudo apontaram, em primeiro lugar, uma inter-relação dos elementos que caracterizam a prática pedagógica. Verificamos que não era possível, por exemplo, estudar a questão da disciplina de modo isolado, pois essa aparecia intimamente associada ao modo de lidar com o conteúdo e às manifestações afetivas da professora, levando, em conseqüência, a um interesse e a uma vibração dos alunos por aprender. Esses aspectos: conteúdo, disciplina, afeto, aprendizagem também aparecem associados ao compromisso da professora com o ensinar.
       Essa foi uma lição bastante importante que aprendemos com o estudo das práticas de alfabetização: a quase impossibilidade de considerar de forma isolada, os elementos que compõe o fazer pedagógico. Essa constatação permite, como contrapartida, destacar uma das contribuições da pesquisa do tipo etnográfico, qual seja a de investigar a prática escolar na sua totalidade e complexidade.
          Uma outra conclusão da pesquisa foi a diversidade existente entre as professoras consideradas bem sucedidas. Por um lado, havia aquelas que mais se aproximavam ao tipo "tradicional", seguindo de perto a cartilha, obedecendo a uma seqüência de atividades bastante rígida e interagindo com as crianças de forma mais autoritária. Por outro lado, havia professoras que desenvolviam atividades bem criativas e estimulavam a participação e a imaginação das crianças. Havia ainda outras que combinavam uma forma mais "convencional" de atuação com situações
de estímulo à inventividade e à participação. Concluímos, naquela ocasião, que não existia um modelo único de professora bem sucedida, mas não tínhamos elementos para analisar mais a fundo o motivo de encontrarmos práticas tão heterogêneas.
          Como havíamos centrado nossa observação nas professoras, deixamos de examinar se e em que medida essa variação se relacionava ao tipo de contexto institucional em que elas atuavam.              Verificamos apenas que algumas tinham um apoio pedagógico e administrativo bastante definido e outras não tinham qualquer suporte. Verificamos também que algumas escolas possuíam uma proposta pedagógica e outras não. Faltou, portanto, uma análise da relação entre o contexto pedagógico e as práticas específicas das professoras.
Essa foi, pois, a outra lição que aprendemos: que a investigação da prática docente não deve se esgotar no espaço da sala de aula, pois pode haver ligações diversas entre essa dinâmica social e as formas de organização do trabalho escolar, as quais não podem ser desconhecidas.
       Tentando superar algumas das limitações identificadas no estudo sobre as professoras alfabetizadoras, a próxima pesquisa focalizou o trabalho docente realizado em uma escola localizada em uma favela do Rio de Janeiro (André e Mediano, 1986).
O objetivo geral da pesquisa era verificar o tipo de prática pedagógica que interfere de forma positiva no desempenho escolar das crianças das camadas populares. Com isso pretendíamos fornecer elementos que pudessem servir de base para programas de intervenção no primeiro segmento do 1o grau.
          A coleta de dados se desenvolveu durante o ano letivo de 1984, envolvendo observações de seis turmas das quatro primeiras séries do 1o grau. Foram feitas também observações da entrada e saída dos alunos, do recreio, da sala dos professores e de vários tipos de reuniões pedagógicas, de conselhos de classe, de reuniões de pais e de festas escolares.A I é m das observações, foram feitas entrevistas com as seis professoras, com a diretora, com a assistente de direção, com a supervisora e a merendeira da escola, com três ex-diretores, dois ex-professores e com pais  pertencentes à diretoria da Associação de Moradores da favela. Houve ainda entrevistas coletivas com os alunos das turmas observadas.
          Pode-se perceber, pela descrição das técnicas de coleta de dados, que havia uma tentativa de ampliar, de forma substantiva, a análise da prática escolar, em comparação com a pesquisa anterior. Procuramos explorar mais intensamente a dimensão institucional, recuperando a história da escola; tentando compreender suas relações com a comunidade; investigando os mecanismos de poder e de decisão vigentes; e analisando as relações entre a estrutura do trabalho escolar e as práticas de sala de aula.
          Ampliamos também o âmbito de estudo da dimensão instrucional, incorporando uma análise das representações das professoras sobre a sua própria prática assim como sobre a escola e o aluno. Acrescentamos a isso as informações obtidas nas entrevistas feitas com os pais e com os alunos, onde pudemos verificar a visão e a importância atribuída à escola.
          Os resultados da pesquisa mostraram haver uma diferença muito grande entre as séries iniciais (1a e 2a) e finais (3a e 4a) quanto à organização das crianças na sala, às formas de ensinar, à rotina de trabalho e à relação professor-aluno. Examinando com cuidado essas diferenças, nós as associamos à existência, na escola, de um projeto pedagógico, fundamentado na perspectiva de Paulo Freire, que vinha sendo implementado nas 1a e 2a séries, com acompanhamento da supervisora da escola e que seria posteriormente estendido às demais séries.Esse projeto envolvia um trabalho coletivo dos professores, coordenado pela supervisora, implicando em reuniões semanais para discussão, análise e revisão das práticas de sala de aula, assim como para planejamento de atividades comuns, troca de materiais e avaliação dos resultados de aprendizagem.
       Outra conclusão da pesquisa foi a existência de uma estreita relação entre a escola e a comunidade. Verificamos que havia uma abertura para a participação dos pais em atividades escolares assim como na discussão de questões pedagógicas. Havia também um grande interesse da direção em discutir questões de interesse da comunidade através do contato freqüente com a Associação de Moradores da favela.
          Finalmente, os dados da pesquisa reforçaram dois achados do estudo anterior: um referente à disciplina e outro referente ao entusiasmo das crianças pela aprendizagem. Observamos haver uma preocupação generalizada, por parte de professores e técnicos com a disciplina, tanto a nível da escola como um todo quanto em sala de aula. Isso ficava evidente na movimentação das crianças na entrada e saída das aulas, no recreio e na merenda, onde dominava um clima de ordem, limpeza e de aparente harmonia entre adultos e crianças. Esse clima de organização parecia afetar positivamente o ensino e a aprendizagem em sala de aula, onde os problemas de indisciplina eram raríssimos e onde se notava uma grande disposição das crianças por aprender.
          As razões desse ambiente propício ao trabalho escolar parecem estar relacionadas à existência do projeto pedagógico, que definia claramente os fins a alcançar com a escolarização e estabelecia as estratégias para sua concretização. Ao lado disso, havia uma supervisora competente que, além de criar as condições necessárias à implementação desse projeto, contando com todo o apoio da direção, colocava-se a serviço dos professores, discutindo com eles suas dificuldades e buscando soluções para uma atuação efetiva junto às crianças das camadas populares.
          A participação ativa dos alunos nas aulas, assim como seu interesse e envolvimento nas atividades, vem apenas demonstrar que o aluno da escola pública não é apático e desinteressado como afirmam alguns. O que parece ser necessário é o que disse a supervisora: "que descubramos formas de trabalhar com eles".
Uma das lições que tiramos dessa pesquisa é o efeito que uma proposta mais abrangente pode ter na qualidade do trabalho desenvolvido na escola. Muito relacionada a essa, mas destacando-se dela pela sua relevância, é a contribuição que uma supervisora comprometida com os problemas da sala de aula e com as necessidades dos alunos pode oferecer no sentido da construção de uma prática docente efetiva.
          Adicionando-se a essas, podemos destacar a contribuição que a pesquisa do tipo etnográfico pode trazer para um entendimento das inter-relações entre o dentro e o fora da sala de aula. Usando uma abordagem teórico- metodológica que supõe o contato direto do pesquisador com o acontecer  diário da prática escolar e uma apreensão dos significados atribuídos a ela por seus agentes, torna-se possível reconstruir as redes de relações que se formam enquanto se dá o processo de transmissão e assimilação de conhecimentos na escola.
Tentando rever criticamente as contribuições e limites dessa pesquisa, podemos dizer que o ganho, em relação à anterior foi a realização de uma análise mais articulada das dimensões que compõem o dia-a-dia da escola. A principal limitação foi uma certa dificuldade de explicar teóricamente alguns momentos de descontinuidade e de ruptura observados na dinâmica de trocas e de relações que constitui a vida escolar.
          Com o propósito de superar essa dificuldade, centramos o nosso próximo estudo na análise das relações sociais expressas no cotidiano escolar, preocupando-nos mais atentamente com os movimentos de dominação- resistência que nele estão presentes.
Tínhamos agora uma clareza maior sobre o referencial teórico que orientaria nossa coleta e análise dos dados.
          Escolhemos uma escola da rede pública da cidade do Rio de Janeiro para nosso locus de investigação. Coletamos os dados durante o ano letivo de 1986, através de observações sistemáticas das atividades da escola. Estivemos presente também, três vezes por semana, em duas turmas de 4a série. A essas informações juntaram-se dados de entrevistas e de contatos informais com o pessoal técnico da escola, com pais, com as professoras das turmas observadas e com seus alunos (André et AL, 1987).
          Como se pode notar, nessa breve descrição dos métodos de coleta, as diferenças em relação ao estudo anterior foram mínimas. A mudança fundamental ocorreu no enfoque teórico escolhido, que nos levou a estudar mais profundamente as categorias de dominação - resistência e nos orientou na definição de uma perspectiva dialética de análise das relações sociais expressas no cotidiano escolar.
Seria impossível retomar aqui todas as considerações que esse enfoque nos possibilitou, seja do "clima" institucional, seja da relação pedagógica de sala de aula ou da inter-relação de ambos.     Poderíamos rever aqui muitas situações do cotidiano escolar onde o confronto social está presente, onde encontros e desencontros se explicitam, onde aproximações e rejeições se manifestam, onde comportamentos de subordinação e de resistência vêm à tona. Não há, porém, tempo nem espaço para tanto.
          Limitar-me-ei, assim, a pontuar algumas contribuições que a pesquisa do tipo etnográfico pode oferecer quando se utiliza uma perspectiva dialética para análise das relações sociais que se expressam no cotidiano escolar.
          O estudo possibilitou afirmar a complexidade da prática educativa. Qualquer análise da escola centrada num único elemento do todo pedagógico vai se apresentar inevitavelmente incompleta, faltosa, inacabada. ,O que acontece dentro da escola é muito mais o resultado da cadeia de relações que constrói o dia-a-dia do professor, do aluno e do conhecimento; e muito menos a atitude e decisão isolada de um desses elementos. Os anéis dessa cadeia se ligam de várias maneiras aos anéis que compõem o todo institucional, o qual se articula de muitas maneiras com as várias esferas do social mais amplo. A análise da prática escolar cotidiana não pode, portanto, desconhecer essas múltiplas articulações, sob pena de se tomar limitada, incompleta.
          Houve, por outro lado, a possibilidade de recompor o movimento que configura as relações sociais que se constroem no cotidiano da prática escolar. Só a partir do momento em que o instrumental teórico, que fundamenta a inserção na realidade social, oferece elementos para se compreender a realidade como algo dialético e não como algo positivo, é possível se chegar um pouco mais perto do confronto, que caracteriza todas as esferas da prática humana e, no caso específico, a esfera da educação escolar.
          É preciso lembrar que a jornada escolar é realizada por indivíduos em relação, produtores e produto de determinados encontros e simultaneamente de desencontros. Os sujeitos, quando entram na escola, não deixam do lado de fora aquele conjunto de fatores individuais e sociais que os distinguem como indivíduos dotados de vontade, sujeitos em um determinado tempo e lugar. Identificar essas características situadas e datadas é condição fundamental para se aproximar da "verdade" pedagógica.

           Concluindo essa revisão de estudos voltados para as situações específicas do cotidiano da escola de 1- grau, podemos afirmar que eles oferecem uma contribuição significativa ao desvelamento da prática docente. Usando enfoques teóricos bem definidos e uma abordagem metodológica que leva em conta as dimensões instrucional-organizacional e socio-política na análise da prática escolar, eles permitem uma compreensão mais profunda do fazer pedagógico, ultrapassando interpretações do senso comum e sugerindo caminhos para seu redimensionamento.
Algumas Questões nos Estudos sobre as Práticas Pedagógicas Bem Sucedidas
Porque reconhecemos o potencial das pesquisas sobre as práticas pedagógicas bem-sucedidas no movimento atual que busca repensar e reconstruir a escola de 1o grau, não podemos deixar de mencionar alguns de seus pontos críticos.
          Tanto na literatura quanto nos debates científicos encontramos indagações do seguinte tipo: Qual o critério para escolha dos bem-sucedidos? Como decidir quem são os professores, as escolas ou as práticas bem-sucedidas? Analisando as pesquisas verificamos que alguns pesquisadores recorrem à indicação de supervisores, diretores ou de técnicos das Delegacias de Ensino (Coelho, 1989); outros consultam os alunos (Cunha, 1988) ou se valem do índice de aprovação do professor (Kramer e André, 1984); e outros ainda combinam essas várias formas (André e Mediano, 1986; Libâneo, 1984).
          As críticas feitas aos critérios utilizados dizem respeito à possibilidade de legitimação, por parte do pesquisador, de escolhas que se baseiam em modelos de competência muito questionáveis ou mesmo em preferências pessoais ao se aceitar, por exemplo, a indicação de diretores ou de técnicos da Secretaria de Educação ou ainda dos alunos. Mesmo no caso em que a definição dos alfabetizadores bem-sucedidos foi o índice de aprovação do ano anterior, podem-se levantar questões sobre os critérios de avaliação do professor ou sobre o que ele considera um aluno alfabetizado.
Além de combinar diferentes critérios, uma das maneiras de superar essas dificuldades é não considerar os critérios adotados como definitivos, mas submetê-los a críticas no desenrolar do trabalho, isto é, transformá- los em questões a serem perseguidas pela pesquisa.
            É também desejável que as análises das práticas bem-sucedidas não se orientem por uma visão dicotômica do tipo bons e maus professores, mas que deixem emergir as diferenças, os matizes, as gradações dentro do grupo estudado, já que tanto na pesquisa de Kramer e André (1984) quanto na de Guarnieri (1990) ficou evidente que não se pode falar num modelo único de competência, mas em graus de competência.
         Outra crítica também feita a esse tipo de pesquisa diz respeito ao próprio conceito do pesquisador sobre o que seja um bom professor. A pergunta chave é a seguinte: Ele é bem-sucedido em que e para quem? (Dias Da Silva, 1992)
          A ela se poderia responder, dizendo que, ao optar por uma abordagem qualitativa, o pesquisador deve ter muito claro que deve justificar suas escolhas, fundamentar suas opções, explicitar seus pontos de vista. Além disso, dentro dessa linha de pesquisa admite-se que não existe uma única e exclusiva forma de interpretação do real. É fundamental, portanto, que o pesquisador revele os argumentos e os fundamentos que o levaram a definir o professor competente, o que permitirá ao leitor um juízo sobre sua validade.
          Outra crítica que aparece quando se discutem as práticas bem-sucedidas é sobre um risco possível de isentar os órgãos públicos de sua responsabilidade em assegurar condições condignas de trabalho ao professor, quando se mostra que mesmo em condições as mais adversas alguns professores conseguem realizar um bom trabalho. Isso talvez pudesse reforçar uma atitude de falta de compromisso do Estado com as questões da educação.
          De fato, se as análises e interpretações dos dados dessas pesquisas não forem além do âmbito de valorização do esforço individual do docente, pode-se oferecer aos órgãos públicos um argumento de que o sucesso ou o fracasso escolar dependem exclusivamente da vontade do professor.
 No entanto, se os pesquisadores se comprometerem a investigar a fundo os fatores relacionados ao sucesso escolar, trazendo-os à tona, estamos certos de que enfatizarão o papel essencial do Estado e dos responsáveis pela implementação das políticas educacionais na concretização do sucesso.
         Pode-se, finalmente, criticar a metodologia usualmente empregada nessas pesquisas, que muitas vezes se limitam a descrever as práticas dos docentes, seja através da observação direta das situações de sala de aula, seja através dos seus próprios depoimentos. Deixam assim de ser respondidas indagações fundamentais sobre os determinantes e processos que levam esses docentes a desenvolver um trabalho diferenciado dos seus pares, o que requer, por exemplo, o uso da metodologia de história de vida e uma análise muito mais global e aprofundada da problemática. Isso nos parece que pode ser resolvido na medida em que se tiver maior clareza de que não é a coleta de dados que define o método, mas sim uma base teórica consistente.
          O que se poderia ainda dizer sobre as pesquisas que analisam as práticas bem-sucedidas é que elas podem oferecer importantes subsídios no esforço atual de repensar a formação docente e reconstruir o ensino de 1 grau. O que esses estudos têm mostrado é que existe um saber que vai sendo construído pelos professores a partir das situações concretas que eles encontram no seu ambiente de trabalho (tipos de alunos, estruturas de poder, formas de organização do trabalho pedagógico, condições e recursos institucionais), que os leva a gerar representações que orientam sua prática, as quais por sua vez decorrem das .suas experiências vividas - seu meio cultural, sua prática social, sua origem familiar e social, sua formação acadêmica.
        Aproximar-se, portanto, desse saber, explicitando-o, compreendendo-o, analisando-o em profundidade pode revelar pistas sobre como formar professores ou como propor práticas alternativas que estão "dando certo" na difícil situação do ensino brasileiro, hoje.
           Outra razão que nos motiva a investigar a prática de bons professores é o deslocamento do foco de atenção do fracasso para o sucesso. Consideramos que as mazelas da escola brasileira vêm sendo bastante
exploradas, mas pouco se tem dito sobre aquilo que vem dando certo, sobre o que vem sendo tentado e os êxitos que vem sendo obtidos. Por que não voltar os olhos para a face positiva da escola e procurar aprender algo dos seus sucessos?








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