ARTIGO
COTIDIANO ESCOLAR E PRÁTICAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS
Marli E. D. A. André*
Introdução
No presente trabalho procuro discutir como os estudos do tipo etnográfico,
que focalizam situações do cotidiano escolar - podem contribuir para o
redimensionamento da prática pedagógica. Tomando por base dados de
três pesquisas realizadas em escolas do 1° grau, pretendo mostrar que
esses estudos constituem importante fonte de reflexão sobre a prática
escolar, ponto de partida para seu entendimento, para o equacionamento
de seus principais problemas e para um encaminhamento de alternativas
visando sua reconstrução.
Tento traçar, na primeira parte do trabalho, o caminho de aproximação da
Educação com a Etnografia. Os estudos sobre a sala de aula e as
pesquisas sobre avaliação curricular parecem estar na raiz dessa
aproximação. Aponto algumas obras e autores que tiveram papel marcante
nessa trajetória e destaco eventos e instituições que favoreceram tal
aproximação.
Em seguida defendo o ponto de vista de que se deve fazer um esforço
para construir teóricamente a categoria "cotidiano escolar", pois vários
estudos referem-se ao cotidiano escolar como mero local de coleta de
dados, sem muita preocupação com seu significado mais profundo.
Argumento que são freqüentes, na área de Educação, trabalhos que
focalizam situações da realidade escolar cotidiana limitando-se à descrição
de seus aspectos mais superficiais e aparentes sem chegar a uma análise
dos múltiplos fatores não visíveis que as determinam. Constato que são
raros os trabalhos que recorrem aos conceitos de "vida cotidiana",
"cotidianidade", "cotidiano" discutidos por autores como Heller, Kosik,
Lefevre, sendo mais raros ainda aqueles que tentam relacionar tais
conceitos com a "vida escolar cotidiana".
*Professora da Faculdade de Educação da USP
Na terceira parte do trabalho ensaio algumas alternativas para se avançar
no sentido da construção da categoria "cotidiano escolar". Tomando como
exemplos três pesquisas realizadas em escolas do 1o grau, analiso-as
criticamente, revendo seu enfoque teórico-metodológico, mostrando suas
principais contribuições e seus maiores problemas.
Finalmente menciono algumas questões comumente apontadas nos de-
bates e na literatura educacional sobre os estudos que focalizam práticas
pedagógicas bem sucedidas.
A Trajetória da Abordagem Etnográfica na Pesquisa sobre a Escola
O interesse dos educadores pela Etnografia torna-se muito evidente no
final dos anos 70 e tem como centro de preocupação o estudo da sala de
aula e a avaliação curricular.
Até o início dos 70, a pesquisa de sala de aula utilizava basicamente
esquemas de observação que visavam registrar comportamentos de
professores e alunos numa situação de interação. Por isso mesmo esses
trabalhos se tornaram conhecidos como "análises de interação". Tendo
como fundamento os princípios da psicologia comportamental, eles serviram
não-somente para estudar as relações professor-aluno em sala de aula
mas também para desenvolver habilidades de ensino ou medir a eficiência
de programas de treinamento de docentes.
Os instrumentos de observação usados nessas pesquisas foram reunidos
numa publicação composta de mais de 10 volumes, intitulada Mirrors for
Behavior (Simon e Boyer, 1968 e 1970) que apresenta uma descrição
detalhada de 79 instrumentos.
Uma análise crítica desse tipo de investigação aparece no livro Explora-
tions in Classroom Observation, organizado por Michel Stubbs e Sara
Delamont, cuja publicação ocorreu em 1976. Esse livro constitui um ponto
importante na história do uso das abordagens etnográficas em educação
- mais especificamente na pesquisa de sala de aula- seja na Europa e
Estados Unidos, seja no Brasil, porque ao mesmo tempo em que faz uma
crítica aos estudos de interação, sugere como alternativa a abordagem
antropológica ou etnográfica.
No primeiro capítulo do livro há uma análise crítica às pesquisas de sala
de aula realizadas principalmente nos Estados Unidos, na década de 60,
que, segundo os autores, muito pouco contribuíram para compreender o
processo de ensino aprendizagem.
As críticas se referem especialmente aos sistemas de observação que
pretendem reduzir os comportamentos de sala de aula a unidades passíveis
de tabulação e mensuração, nos moldes de Flanders. Esses esquemas
de observação, segundo Delamont e Hamilton (1976), ignoram muitas
vezes o contexto espaço-temporal em que os comportamentos se
manifestam; focalizam estritamente o que pode ser observado; utilizam
unidades de observação derivadas de categorias pré-estabelecidas, que
por sua vez orientam a análise, criando uma certa circularidade na
interpretação. Além disso, ao segmentar os comportamentos em unidades
mensuráveis, esses esquemas colocam limites arbitrários em algo que é
contínuo. Ainda no que se refere à interpretação dos dados, há dificuldades
inerentes a como lidar com a massa de dados usualmente coletada
através desses sistemas. Pode-se dizer, assim, que nesse tipo de estudo
há uma super valorização da metodologia em detrimento da teoria - é o
que acontece por exemplo ao se usar um sistema de categorias definidas
a priori, que separa o cognitivo do afetivo - e uma preocupação exagerada
com a objetividade, que leva a valorizar mais o número de observações
que seu conteúdo.
A alternativa apresentada pelos autores, para ultrapassar os problemas
encontrados nos esquemas de análise da interação é a abordagem
antropológica. Segundo eles, a investigação de sala de aula ocorre sempre
num contexto permeado por uma multiplicidade de sentidos, que por sua
vez fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo
pesquisador. Para entender e descrever essa cultura, o pesquisador faz
uso da observação participante, que envolve registro de campo, entrevistas,
análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são
considerados sempre inacabados. O observador não pretende comprovar
teorias nem fazer generalizações estatísticas. O que busca, sim, é
compreender e descrever a situação, revelar seus múltiplos significados,
deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser
generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e sua plausibi-
lidade.
O livro de Stubbs e Delamont foi importante, por um lado, porque apresentou
de forma concisa e bem fundamentada as principais críticas aos estudos
da interação e, por outro lado, porque divulgou os pressupostos da
Etnografia, recomendando o uso da abordagem antropológica na pesquisa
de sala de aula.
De maneira mais direta, há uma contribuição de Sara Delamont à pesquisa
educacional no Brasil, uma vez que ela esteve pessoalmente na Fundação
Carlos Chagas, em São Paulo, no final dos 70, quando foram realizados
vários seminários e discussões sobre o potencial dessa abordagem para
a área de educação.
Outra publicação que certamente preparou favoravelmente o terreno para
a aproximação da Etnografia com a Educação foi o livro publicado por
David Hamilton, David Jenkins, Cristine King, Barry MacDonald e Malcolm
Parlett, intitulado Beyond the Numbers Game (1977). O livro resultou de
um seminário realizado em 1972, em Cambridge (GB), onde foram
discutidos métodos não convencionais de avaliação de currículo e foram
feitas propostas para os futuros estudos na área. Um trabalho que teve
grande destaque nesse encontro foi o de Parlett e Hamilton, que critica de
forma contundente o paradigma vigente nas pesquisas avaliativas,
sugerindo como alternativa a abordagem iluminativa, que tem fundamento
no paradigma sócio-antropológico. Na proposta desses autores deve ser
dada atenção especial ao contexto particular em que se desenvolvem as
práticas educacionais, devem ser levadas em conta as dimensões sociais,
culturais, institucionais que cercam cada programa ou situação investigada
e devem ser retratados os pontos de vista divergentes dos diferentes
grupos relacionados ao programa ou situação avaliada. Outros trabalhos
discutidos no seminário defendem a mesma linha, havendo mesmo um
manifesto final do encontro, onde os participantes expressam suas principais
recomendações, que podem ser resumidas nos seguintes pontos:
- que sejam mais usados dados de observação (substituindo, quando
possível, os dados de testes);
- flexibilidade no "design" para inclusão de eventos não previstos
(focalização progressiva em lugar de esquema pré-definido).
- que os valores e posições do avaliador sejam revelados.
Muito embora essas idéias se dirijam mais diretamente aos trabalhos de
avaliação curricular, elas tiveram um impacto grande na pesquisa
educacional, tanto na Inglaterra e Escócia, América do Norte, Suécia e
Austrália de onde provinham os participantes do encontro, quanto em
vários outros países onde chegaram os resultados do seminário, entre os
quais o Brasil.
Não há a menor dúvida de que os primeiros trabalhos publicados no Brasil
sobre o uso da abordagem etnográfica em educação (ver especialmente
ANDRÉ, 1978) tiveram influência dos trabalhos realizados na área de
avaliação, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos. Nesse sentido
não pode ser esquecido o livro de Egon Guba Toward a Methodology of
Naturalistic Inquiry in Education (1978), que certamente foi um marco
importante na área de avaliação, inaugurando uma linha nova e muito fértil
de investigação - a dos estudos "naturalísticos", baseados na abordagem
antropológica ou etnográfica.
No Brasil, além da Fundação Carlos Chagas já mencionada, destacou-se
também o Departamento de Educação da PUC-RJ, que foi sem dúvida
pioneiro na realização e divulgação de pesquisas utilizando essa abordagem
de pesquisa.
Um evento importante na socialização mais ampla dessas novas idéias foi
o Seminário de Pesquisas da Região Sudeste, realizado em Belo Horizonte,
em 1980, quando foi organizada uma mesa redonda sobre o tema "A
Pesquisa Qualitativa e o Estudo da Escola". Nesse momento o centro de
interesse amplia-se da sala de aula para a escola e da abordagem
etnográfica para outras formas de investigação como, por exemplo, a
pesquisa participante (Campos, 1984). As propostas apresentadas por
vários pesquisadores nesse encontro, assim como os comentários da
debatedora, profa. Aparecida Joly Gouveia, foram publicados nos Cadernos
de Pesquisa no 49 (Ludke, 1984), ampliando considerávelmente o âmbito
de divulgação dessas idéias.
Outro evento marcante no debate educacional acerca das novas formas
de investigação foi o seminário promovido pelo INEP -Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais - sobre pesquisa participativa, em
1983, onde surgiram muitas questões importantes, divulgadas no Em
Aberto no 20 (1984). Neste evento esteve presente a pesquisadora Justa
Ezpeleta, do Centro de Estúdios Educativos, do México, que, além de
fazer considerações muito polêmicas durante o encontro, publica um
pouco mais tarde, junto com Elsie Rockwell, o livro Pesquisa
Participante(1986) que é, sem dúvida, uma referência obrigatória aos
que se interessam pelo uso da abordagem etnográfica no estudo da
escola.
Não podemos deixar de mencionar ainda a visita do Dr. Robert Stake, do
Center for Instructional Research and Curriculum Evaluation, da
Universidade de Illinois, que esteve na UFES, na USP, na PUC-RJ, na
UFRGS e na Fundação Carlos Chagas no ano de 1983, divulgando suas
pesquisas e discutindo questões voltadas ao uso das abordagens
qualitativas em educação.
Ao lado desse e de outros pesquisadores que ainda poderiam ser lembrados
nessa nossa breve reconstituição da trajetória da Etnografia e das
abordagens qualitativas na área de educação, precisam ser lembrados
dois nomes: Luiz Pereira e Aparecida Joly Gouveia que fizeram uso de
conhecimentos sociológicos para investigar os problemas da escola e da
educação. Seus trabalhos são considerados "clássicos" e sem dúvida
tiveram e têm ainda bastante influência na pesquisa em educação.
No final dos anos 80 há um número considerável de dissertações, teses
e relatórios de pesquisas nos Programas de Pós-Graduação em Educação
do Brasil que mencionam as abordagens qualitativas. A cada ano novos
trabalhos vão surgindo, tornando agora a produção mais consistente e
deixando também mais evidente os problemas e desafios que ainda
devemos enfrentar. Vamos discutir apenas alguns deles.
Da Necessidade de Construir a Categoria "Cotidiano Escolar"
Muitos estudos e pesquisas produzidos na área de educação, nos últimos
dez anos se auto classificam como "qualitativos" e não raro como
etnográficos. O que se verifica, no entanto, é que a grande maioria
envolve dados de campo, sistematizados em forma de descrições que
acrescentam muito pouco ao que se sabe ou conhece ao nível do senso comum. É a empiria pela empiria. O autor parece satisfazer-se com o fato
de coletar uma grande quantidade de dados e parece "esperar" que esses
dados por si produzam alguma teoria. Mas é evidente que sem um
referencial de apoio que oriente o processo de reconstrução desses
dados não há avanço teórico - fica-se na constatação do óbvio, na
mesmice, na reprodução do senso comum.
O que acontece nesses casos é uma supervalorização dos procedimentos
de coleta de dados em detrimento de uma opção metodológica, uma vez
que os estudos se limitam a apresentar esses dados na forma em que se
manifestam, sem um questionamento mais profundo de suas raízes, de
seu significado naquele momento histórico, de seus condicionantes e
implicações. Falta nos mesmos um suporte teórico que oriente o processo
de construção do objeto de estudo, sendo bastante comum a apresentação
de um referencial teórico no início do trabalho que tem muito pouco a ver
com o trabalho de campo e as análises realizadas.
Essa confusão entre procedimento etnográfico e método de investigação
acaba por limitar sobremaneira as contribuições dessas pesquisas em
termos de geração de novos conhecimentos. A própria qualidade do
trabalho fica comprometida, pois como não há muita clareza sobre a
importância do referencial teórico e de seu papel no processo de coleta e
análise dos dados, seus resultados acabam ficando na constatação do
óbvio. Há constantemente uma questão no ar: O que tal estudo acrescentou
ao que já se sabia?
Assim como acontece com a etnografia que, ao ser apropriada pela área
de educação, passa por um certo reducionismo, perdendo seu sentido
metodológico de "descrição densa da cultura de um grupo" (Geertz, 1973),
para se tornar um mero procedimento de coleta e descrição de dados,
também o conceito de cotidiano escolar tem sido usado nas pesquisas
educacionais num sentido muito estrito - lugar da coleta de dados. Ora,
essa concepção limitada tem produzido trabalhos no cotidiano da escola,
mas não sobre o cotidiano da escola. Muito pouco esforço tem sido feito
em termos de construir a categoria "cotidiano escolar". Continuamos,
ainda, sem muita clareza sobre o que consistui a vida escolar cotidiana,
sobre as suas especificidades e sobre a dinâmica de relações entre essa
e outras esferas da vida em sociedade.
É urgente que se construa teóricamente a categoria cotidiano escolar,
pois sem ela corre-se o risco ou de tomar as propostas de autores como
Heller, Lefèvre, Kosik, que falam do cotidiano em geral e tentar aplicá-las
diretamente, de forma dedutiva, na análise da escola; ou então, por falta
de um questionamento profundo das categorias que emergem da vida
escolar diária, tomar o concreto empírico como sendo o concreto real.
Investigar as especificidades do cotidiano da escola é tarefa das mais
urgentes. Precisamos tentar responder a questões como: O que caracteriza
a vida escolar cotidiana? Que elementos são específicos da instituição
escolar, isto é, só aparecem na escola? Como esses elementos específicos
se articulam - ou não -com outras esferas da vida cotidiana?
Pensando no caminho a ser seguido para que se efetive tal construção,
consideramos que os pesquisadores precisam, antes de tudo, estar atentos
para não limitar a descrição do que se passa no dia-a-dia escolar à sua
manifestação primeira, ao concreto aparente. Precisam, em vez disso,
tentar ir bem fundo na análise dos elementos que compõem esse cotidiano,
questionando suas origens, seu significado, suas limitações e principalmente
suas vinculações aos objetivos sócio-políticos e econômicos que os
determinam naquele momento histórico. Para proceder a essa crítica o
pesquisador vai ter que se apoiar num referencial teórico que o oriente na
escolha inicial das categorias de análise e posteriormente na sua
reconstrução em face das características específicas do objeto de estudo.
Alem disso, é preciso que ele mantenha essa atitude crítica ao longo do
trabalho de pesquisa e mesmo ao final dele, questionando o valor e a
pertinência de suas análises e pressupostos, identificando seus limites e
buscando medidas concretas de superá-las.
Revendo Estudos sobre as Práticas Escolares do 1 Grau
Vou retomar aqui três pesquisas desenvolvidas em escolas do 1 grau,
apontando seus objetivos, o enfoque teórico-metodológico utilizado e os
problemas encontrados. Tentarei mostrar que, ao fazer a revisão crítica
das mesmas,foram se tornando evidentes algumas dimensões que devem
se privilegiadas na abordagem das situações do cotidiano escolar.
Em 1983, realizamos uma pesquisa sobre as práticas de alfabetização de 20 professoras da rede pública da cidade do Rio de Janeiro (Kramer e
André, 1984). O que buscávamos e o que aprendemos com esse estudo?
Pretendíamos, em termos gerais, conhecer o trabalho desenvolvido por
professoras que estavam tendo sucesso na alfabetização de crianças da
escola pública, apesar dos limites de suas condições de trabalho e
formação. Em termos mais específicos tentávamos investigar: (1) como a
professora lidava com a problemática da disciplina na sala de aula; (2) se
e como eram aproveitadas as experiências e vivências culturais das
crianças; e (3) quais os critérios da professora para considerar seus
alunos alfabetizados. Para a coleta de dados utilizamos basicamente a
observação das aulas, tendo como alvo as práticas de trabalho da
professora.
As conclusões do estudo apontaram, em primeiro lugar, uma inter-relação
dos elementos que caracterizam a prática pedagógica. Verificamos que
não era possível, por exemplo, estudar a questão da disciplina de modo
isolado, pois essa aparecia intimamente associada ao modo de lidar com
o conteúdo e às manifestações afetivas da professora, levando, em
conseqüência, a um interesse e a uma vibração dos alunos por aprender.
Esses aspectos: conteúdo, disciplina, afeto, aprendizagem também
aparecem associados ao compromisso da professora com o ensinar.
Essa foi uma lição bastante importante que aprendemos com o estudo das
práticas de alfabetização: a quase impossibilidade de considerar de forma
isolada, os elementos que compõe o fazer pedagógico. Essa constatação
permite, como contrapartida, destacar uma das contribuições da pesquisa
do tipo etnográfico, qual seja a de investigar a prática escolar na sua
totalidade e complexidade.
Uma outra conclusão da pesquisa foi a diversidade existente entre as
professoras consideradas bem sucedidas. Por um lado, havia aquelas
que mais se aproximavam ao tipo "tradicional", seguindo de perto a
cartilha, obedecendo a uma seqüência de atividades bastante rígida e
interagindo com as crianças de forma mais autoritária. Por outro lado,
havia professoras que desenvolviam atividades bem criativas e estimulavam
a participação e a imaginação das crianças. Havia ainda outras que
combinavam uma forma mais "convencional" de atuação com situações
de estímulo à inventividade e à participação. Concluímos, naquela ocasião,
que não existia um modelo único de professora bem sucedida, mas não
tínhamos elementos para analisar mais a fundo o motivo de encontrarmos
práticas tão heterogêneas.
Como havíamos centrado nossa observação nas professoras, deixamos
de examinar se e em que medida essa variação se relacionava ao tipo de
contexto institucional em que elas atuavam. Verificamos apenas que
algumas tinham um apoio pedagógico e administrativo bastante definido e
outras não tinham qualquer suporte. Verificamos também que algumas
escolas possuíam uma proposta pedagógica e outras não. Faltou, portanto,
uma análise da relação entre o contexto pedagógico e as práticas
específicas das professoras.
Essa foi, pois, a outra lição que aprendemos: que a investigação da
prática docente não deve se esgotar no espaço da sala de aula, pois pode
haver ligações diversas entre essa dinâmica social e as formas de
organização do trabalho escolar, as quais não podem ser desconhecidas.
Tentando superar algumas das limitações identificadas no estudo sobre
as professoras alfabetizadoras, a próxima pesquisa focalizou o trabalho
docente realizado em uma escola localizada em uma favela do Rio de
Janeiro (André e Mediano, 1986).
O objetivo geral da pesquisa era verificar o tipo de prática pedagógica que
interfere de forma positiva no desempenho escolar das crianças das
camadas populares. Com isso pretendíamos fornecer elementos que
pudessem servir de base para programas de intervenção no primeiro
segmento do 1o grau.
A coleta de dados se desenvolveu durante o ano letivo de 1984, envolvendo
observações de seis turmas das quatro primeiras séries do 1o grau. Foram
feitas também observações da entrada e saída dos alunos, do recreio, da
sala dos professores e de vários tipos de reuniões pedagógicas, de
conselhos de classe, de reuniões de pais e de festas escolares.A I é m
das observações, foram feitas entrevistas com as seis professoras, com a
diretora, com a assistente de direção, com a supervisora e a merendeira
da escola, com três ex-diretores, dois ex-professores e com pais pertencentes à diretoria da Associação de Moradores da favela. Houve
ainda entrevistas coletivas com os alunos das turmas observadas.
Pode-se perceber, pela descrição das técnicas de coleta de dados, que
havia uma tentativa de ampliar, de forma substantiva, a análise da prática
escolar, em comparação com a pesquisa anterior. Procuramos explorar
mais intensamente a dimensão institucional, recuperando a história da
escola; tentando compreender suas relações com a comunidade;
investigando os mecanismos de poder e de decisão vigentes; e analisando
as relações entre a estrutura do trabalho escolar e as práticas de sala de
aula.
Ampliamos também o âmbito de estudo da dimensão instrucional,
incorporando uma análise das representações das professoras sobre a
sua própria prática assim como sobre a escola e o aluno. Acrescentamos
a isso as informações obtidas nas entrevistas feitas com os pais e com os
alunos, onde pudemos verificar a visão e a importância atribuída à escola.
Os resultados da pesquisa mostraram haver uma diferença muito grande
entre as séries iniciais (1a e 2a) e finais (3a e 4a) quanto à organização das
crianças na sala, às formas de ensinar, à rotina de trabalho e à relação
professor-aluno. Examinando com cuidado essas diferenças, nós as
associamos à existência, na escola, de um projeto pedagógico,
fundamentado na perspectiva de Paulo Freire, que vinha sendo
implementado nas 1a e 2a séries, com acompanhamento da supervisora
da escola e que seria posteriormente estendido às demais séries.Esse
projeto envolvia um trabalho coletivo dos professores, coordenado pela
supervisora, implicando em reuniões semanais para discussão, análise e
revisão das práticas de sala de aula, assim como para planejamento de
atividades comuns, troca de materiais e avaliação dos resultados de
aprendizagem.
Outra conclusão da pesquisa foi a existência de uma estreita relação entre
a escola e a comunidade. Verificamos que havia uma abertura para a
participação dos pais em atividades escolares assim como na discussão
de questões pedagógicas. Havia também um grande interesse da direção
em discutir questões de interesse da comunidade através do contato
freqüente com a Associação de Moradores da favela.
Finalmente, os dados da pesquisa reforçaram dois achados do estudo
anterior: um referente à disciplina e outro referente ao entusiasmo das
crianças pela aprendizagem. Observamos haver uma preocupação
generalizada, por parte de professores e técnicos com a disciplina, tanto
a nível da escola como um todo quanto em sala de aula. Isso ficava
evidente na movimentação das crianças na entrada e saída das aulas, no
recreio e na merenda, onde dominava um clima de ordem, limpeza e de
aparente harmonia entre adultos e crianças. Esse clima de organização
parecia afetar positivamente o ensino e a aprendizagem em sala de aula,
onde os problemas de indisciplina eram raríssimos e onde se notava uma
grande disposição das crianças por aprender.
As razões desse ambiente propício ao trabalho escolar parecem estar
relacionadas à existência do projeto pedagógico, que definia claramente
os fins a alcançar com a escolarização e estabelecia as estratégias para
sua concretização. Ao lado disso, havia uma supervisora competente que,
além de criar as condições necessárias à implementação desse projeto,
contando com todo o apoio da direção, colocava-se a serviço dos
professores, discutindo com eles suas dificuldades e buscando soluções
para uma atuação efetiva junto às crianças das camadas populares.
A participação ativa dos alunos nas aulas, assim como seu interesse e
envolvimento nas atividades, vem apenas demonstrar que o aluno da
escola pública não é apático e desinteressado como afirmam alguns. O
que parece ser necessário é o que disse a supervisora: "que descubramos
formas de trabalhar com eles".
Uma das lições que tiramos dessa pesquisa é o efeito que uma proposta
mais abrangente pode ter na qualidade do trabalho desenvolvido na
escola. Muito relacionada a essa, mas destacando-se dela pela sua
relevância, é a contribuição que uma supervisora comprometida com os
problemas da sala de aula e com as necessidades dos alunos pode
oferecer no sentido da construção de uma prática docente efetiva.
Adicionando-se a essas, podemos destacar a contribuição que a pesquisa
do tipo etnográfico pode trazer para um entendimento das inter-relações entre o dentro e o fora da sala de aula. Usando uma abordagem teórico-
metodológica que supõe o contato direto do pesquisador com o acontecer diário da prática escolar e uma apreensão dos significados atribuídos a ela
por seus agentes, torna-se possível reconstruir as redes de relações que
se formam enquanto se dá o processo de transmissão e assimilação de
conhecimentos na escola.
Tentando rever criticamente as contribuições e limites dessa pesquisa,
podemos dizer que o ganho, em relação à anterior foi a realização de uma
análise mais articulada das dimensões que compõem o dia-a-dia da
escola. A principal limitação foi uma certa dificuldade de explicar
teóricamente alguns momentos de descontinuidade e de ruptura
observados na dinâmica de trocas e de relações que constitui a vida
escolar.
Com o propósito de superar essa dificuldade, centramos o nosso próximo
estudo na análise das relações sociais expressas no cotidiano escolar,
preocupando-nos mais atentamente com os movimentos de dominação-
resistência que nele estão presentes.
Tínhamos agora uma clareza maior sobre o referencial teórico que orientaria
nossa coleta e análise dos dados.
Escolhemos uma escola da rede pública da cidade do Rio de Janeiro para
nosso locus de investigação. Coletamos os dados durante o ano letivo de
1986, através de observações sistemáticas das atividades da escola.
Estivemos presente também, três vezes por semana, em duas turmas de
4a série. A essas informações juntaram-se dados de entrevistas e de
contatos informais com o pessoal técnico da escola, com pais, com as
professoras das turmas observadas e com seus alunos (André et AL,
1987).
Como se pode notar, nessa breve descrição dos métodos de coleta, as
diferenças em relação ao estudo anterior foram mínimas. A mudança
fundamental ocorreu no enfoque teórico escolhido, que nos levou a estudar
mais profundamente as categorias de dominação - resistência e nos
orientou na definição de uma perspectiva dialética de análise das relações
sociais expressas no cotidiano escolar.
Seria impossível retomar aqui todas as considerações que esse enfoque
nos possibilitou, seja do "clima" institucional, seja da relação pedagógica
de sala de aula ou da inter-relação de ambos. Poderíamos rever aqui muitas situações do cotidiano escolar onde o confronto social está presente,
onde encontros e desencontros se explicitam, onde aproximações e
rejeições se manifestam, onde comportamentos de subordinação e de
resistência vêm à tona. Não há, porém, tempo nem espaço para tanto.
Limitar-me-ei, assim, a pontuar algumas contribuições que a pesquisa do
tipo etnográfico pode oferecer quando se utiliza uma perspectiva dialética
para análise das relações sociais que se expressam no cotidiano escolar.
O estudo possibilitou afirmar a complexidade da prática educativa. Qualquer
análise da escola centrada num único elemento do todo pedagógico vai se
apresentar inevitavelmente incompleta, faltosa, inacabada. ,O que acontece
dentro da escola é muito mais o resultado da cadeia de relações que
constrói o dia-a-dia do professor, do aluno e do conhecimento; e muito
menos a atitude e decisão isolada de um desses elementos. Os anéis
dessa cadeia se ligam de várias maneiras aos anéis que compõem o todo
institucional, o qual se articula de muitas maneiras com as várias esferas
do social mais amplo. A análise da prática escolar cotidiana não pode,
portanto, desconhecer essas múltiplas articulações, sob pena de se tomar
limitada, incompleta.
Houve, por outro lado, a possibilidade de recompor o movimento que
configura as relações sociais que se constroem no cotidiano da prática
escolar. Só a partir do momento em que o instrumental teórico, que
fundamenta a inserção na realidade social, oferece elementos para se
compreender a realidade como algo dialético e não como algo positivo, é
possível se chegar um pouco mais perto do confronto, que caracteriza
todas as esferas da prática humana e, no caso específico, a esfera da
educação escolar.
É preciso lembrar que a jornada escolar é realizada por indivíduos em
relação, produtores e produto de determinados encontros e
simultaneamente de desencontros. Os sujeitos, quando entram na escola,
não deixam do lado de fora aquele conjunto de fatores individuais e
sociais que os distinguem como indivíduos dotados de vontade, sujeitos
em um determinado tempo e lugar. Identificar essas características situadas
e datadas é condição fundamental para se aproximar da "verdade"
pedagógica.
Concluindo essa revisão de estudos voltados para as situações específicas
do cotidiano da escola de 1- grau, podemos afirmar que eles oferecem
uma contribuição significativa ao desvelamento da prática docente. Usando
enfoques teóricos bem definidos e uma abordagem metodológica que
leva em conta as dimensões instrucional-organizacional e socio-política
na análise da prática escolar, eles permitem uma compreensão mais
profunda do fazer pedagógico, ultrapassando interpretações do senso
comum e sugerindo caminhos para seu redimensionamento.
Algumas Questões nos Estudos sobre as Práticas Pedagógicas
Bem Sucedidas
Porque reconhecemos o potencial das pesquisas sobre as práticas
pedagógicas bem-sucedidas no movimento atual que busca repensar e
reconstruir a escola de 1o grau, não podemos deixar de mencionar alguns
de seus pontos críticos.
Tanto na literatura quanto nos debates científicos encontramos indagações
do seguinte tipo: Qual o critério para escolha dos bem-sucedidos? Como
decidir quem são os professores, as escolas ou as práticas bem-sucedidas?
Analisando as pesquisas verificamos que alguns pesquisadores recorrem
à indicação de supervisores, diretores ou de técnicos das Delegacias de
Ensino (Coelho, 1989); outros consultam os alunos (Cunha, 1988) ou se
valem do índice de aprovação do professor (Kramer e André, 1984); e
outros ainda combinam essas várias formas (André e Mediano, 1986;
Libâneo, 1984).
As críticas feitas aos critérios utilizados dizem respeito à possibilidade de
legitimação, por parte do pesquisador, de escolhas que se baseiam em
modelos de competência muito questionáveis ou mesmo em preferências
pessoais ao se aceitar, por exemplo, a indicação de diretores ou de
técnicos da Secretaria de Educação ou ainda dos alunos. Mesmo no caso
em que a definição dos alfabetizadores bem-sucedidos foi o índice de
aprovação do ano anterior, podem-se levantar questões sobre os critérios
de avaliação do professor ou sobre o que ele considera um aluno
alfabetizado.
Além de combinar diferentes critérios, uma das maneiras de superar
essas dificuldades é não considerar os critérios adotados como definitivos,
mas submetê-los a críticas no desenrolar do trabalho, isto é, transformá-
los em questões a serem perseguidas pela pesquisa.
É também desejável que as análises das práticas bem-sucedidas não se
orientem por uma visão dicotômica do tipo bons e maus professores, mas
que deixem emergir as diferenças, os matizes, as gradações dentro do
grupo estudado, já que tanto na pesquisa de Kramer e André (1984)
quanto na de Guarnieri (1990) ficou evidente que não se pode falar num
modelo único de competência, mas em graus de competência.
Outra crítica também feita a esse tipo de pesquisa diz respeito ao próprio
conceito do pesquisador sobre o que seja um bom professor. A pergunta
chave é a seguinte: Ele é bem-sucedido em que e para quem? (Dias Da
Silva, 1992)
A ela se poderia responder, dizendo que, ao optar por uma abordagem
qualitativa, o pesquisador deve ter muito claro que deve justificar suas
escolhas, fundamentar suas opções, explicitar seus pontos de vista. Além
disso, dentro dessa linha de pesquisa admite-se que não existe uma única
e exclusiva forma de interpretação do real. É fundamental, portanto, que
o pesquisador revele os argumentos e os fundamentos que o levaram a
definir o professor competente, o que permitirá ao leitor um juízo sobre sua
validade.
Outra crítica que aparece quando se discutem as práticas bem-sucedidas
é sobre um risco possível de isentar os órgãos públicos de sua
responsabilidade em assegurar condições condignas de trabalho ao professor, quando se mostra que mesmo em condições as mais adversas
alguns professores conseguem realizar um bom trabalho. Isso talvez pudesse
reforçar uma atitude de falta de compromisso do Estado com as questões
da educação.
De fato, se as análises e interpretações dos dados dessas pesquisas não
forem além do âmbito de valorização do esforço individual do docente,
pode-se oferecer aos órgãos públicos um argumento de que o sucesso ou
o fracasso escolar dependem exclusivamente da vontade do professor.
No entanto, se os pesquisadores se comprometerem a investigar a fundo
os fatores relacionados ao sucesso escolar, trazendo-os à tona, estamos
certos de que enfatizarão o papel essencial do Estado e dos responsáveis
pela implementação das políticas educacionais na concretização do
sucesso.
Pode-se, finalmente, criticar a metodologia usualmente empregada nessas
pesquisas, que muitas vezes se limitam a descrever as práticas dos
docentes, seja através da observação direta das situações de sala de
aula, seja através dos seus próprios depoimentos. Deixam assim de ser
respondidas indagações fundamentais sobre os determinantes e processos
que levam esses docentes a desenvolver um trabalho diferenciado dos
seus pares, o que requer, por exemplo, o uso da metodologia de história
de vida e uma análise muito mais global e aprofundada da problemática.
Isso nos parece que pode ser resolvido na medida em que se tiver maior
clareza de que não é a coleta de dados que define o método, mas sim uma
base teórica consistente.
O que se poderia ainda dizer sobre as pesquisas que analisam as práticas
bem-sucedidas é que elas podem oferecer importantes subsídios no
esforço atual de repensar a formação docente e reconstruir o ensino de 1 grau. O que esses estudos têm mostrado é que existe um saber que vai
sendo construído pelos professores a partir das situações concretas que
eles encontram no seu ambiente de trabalho (tipos de alunos, estruturas
de poder, formas de organização do trabalho pedagógico, condições e
recursos institucionais), que os leva a gerar representações que orientam
sua prática, as quais por sua vez decorrem das .suas experiências vividas
- seu meio cultural, sua prática social, sua origem familiar e social, sua
formação acadêmica.
Aproximar-se, portanto, desse saber, explicitando-o, compreendendo-o,
analisando-o em profundidade pode revelar pistas sobre como formar
professores ou como propor práticas alternativas que estão "dando certo"
na difícil situação do ensino brasileiro, hoje.
Outra razão que nos motiva a investigar a prática de bons professores é
o deslocamento do foco de atenção do fracasso para o sucesso.
Consideramos que as mazelas da escola brasileira vêm sendo bastante
exploradas, mas pouco se tem dito sobre aquilo que vem dando certo,
sobre o que vem sendo tentado e os êxitos que vem sendo obtidos. Por
que não voltar os olhos para a face positiva da escola e procurar aprender
algo dos seus sucessos?
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